domingo, 25 de março de 2018

Saudade

Sou uma pessoa muito sortuda. A vida me deu muitos irmãos e, com a maioria deles, tive (e ainda tenho) uma relação de quase filha por ser temporã.
O lado ruim disso é que, aos poucos, eles se vão. Em 1987, perdemos Zezinho, o único homem de uma prole de mulheres. Em 2013 (no dia 26 de março), perdemos July; em 2014, Jandira; em 2015, Anna Maria. 
Tivemos três anos sem perdas e ontem Lila se foi. "Ela descansou" - foi o mantra repetido por todos na família como consolo. Aos 95 anos muito bem vividos, ela sofria nos últimos meses com dores e muita falta de ar. 
A gente sentia que ela estava se apagando e eu queria, neste momento, ter a fé de muitos de meus sobrinhos e poder dizer que Lila está melhor agora, por ter reencontrado as pessoas que amou durante a vida e que se foram antes dela.
Longe de mim questionar a fé dos demais. Só quero neste momento prestar minha homenagem pública a essa irmã, cuja história sempre me intrigou quando eu era pequena. Era minha irmã, mas chamava minha mãe pelo nome? Aos poucos, pude compreender melhor, já que Lila tinha 10 anos quando minha mãe, uma jovem de 16 anos, se casou com meu pai, um homem experiente, de mais de 30 anos. 
Na minha infância, Lila morava com a família em Campo Grande e nossos contatos não eram frequentes, já que mudei com meus pais e irmãs solteiras para o Rio de Janeiro quando eu tinha dois anos. 
Posso dizer que conheci Lila realmente quando eu já estava moça e passei alguns dias com ela e Norberto, seu querido marido, em Campo Grande e na fazenda, nos anos 80. Foi tão gostoso! O casal me acolheu com tanto carinho, apesar de ser muito católico e conservador, e eu estar com o meu companheiro sem ser casada no papel ou na igreja.
Nessa oportunidade, pude conhecer melhor a história de Lila e me apaixonei perdidamente por ela. 
Depois disso foram muitos os nossos encontros. Ela era alegre,  elegante, muito gentil, uma verdadeira lady. 
Após a morte de Norberto, a gente ainda se encontrou várias vezes, no saudoso encontro da família Baptista realizado em Campo Grande, em 2011, e em outras ocasiões festivas, em que ela nos brindava com sua alegria, a vontade de dançar e celebrar a vida, a família, a nossa união.
A palavra que mais me vem à mente enquanto falo dela é "querida". Era como Norberto se referia a ela, num amor infinito e incondicional.
No final de janeiro, fui visitá-la em Campo Grande e saí da casa de sua filha Maria do Carmo com a sensação de que não a veria mais. Eu me senti extremamente honrada por ter sido recebida por ela com tanta alegria.
"Diz que tem alguém que veio de Cuiabá me visitar" - disse-me, faceira, por telefone antes de nos encontrarmos.
Embora ela já estivesse adoentada, conversamos muito, demos risadas e eu me atrevi a gravar alguns trechos de nossa conversa coletiva. Algumas passagens me comoveram muito. Ela me contou que não sabia como iria chamar a esposa de seu pai e nossa avó Maria do Carmo, que a criava, sugeriu que chamasse pelo nome (Nilzalina), já que era muito jovem para ser sua mãe.
Muitas décadas me separam dessa irmã mais velha e longeva, que viveu em outros tempos, enfrentou outros desafios, e que era uma referência para todos nós, Baptistas mais jovens. Lila deixa muitas saudades como Zezinho, July, Jandira e Anna Maria. 
Agora somos apenas três de uma irmandade em que, apesar das diferenças de idade, pensamento, crença, sempre houve - e haverá - muito amor. 
Obrigada, Lila, por fazer parte de nossa história e por tudo que você nos ensinou. 
 PS. Peço licença à Maria do Carmo, Mônica e Consuelo para publicar esta minha última foto com Lila, tirada em 28 de janeiro de 2018. No sábado, dia de nosso primeiro encontro, ela foi ao salão para lavar o cabelo e fazer escova.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Maria Madalena


Assisti ontem ao filme "Maria Madalena", do diretor australiano Garth Davis. Como já fui aguardando um filme lento - por conta de comentários ouvidos -, não me chateei com o ritmo do filme. 
Pelo contrário, eu me deliciei com a paisagem, a trilha sonora de Johann Johannsson, que morreu em fevereiro passado, antes mesmo da estreia do longa; a interpretação dos atores (especialmente, Joaquin Phoenix e Rooney Mara), baseada em troca de olhares; os diálogos plenos de simbologia.
Quase tudo que diz respeito à história de Jesus Cristo é fruto de versões criadas a partir de testemunhas da época, entre eles, obviamente os quatro evangelistas: Lucas, João, Mateus e Marcos.
Como fui criada num ambiente católico, frequentei colégios católicos e a Igreja católica por muito tempo até perder a minha fé, aos 17 anos. Depois disso, juro que tentei seguir alguma religião, mas até hoje não consegui recuperar minha fé em Deus, embora não me considere uma pessoa ateia. 
Disse isso para justificar por que sou relativamente aberta a novas versões da história desse homem que transformou a história da humanidade. 
Os acontecimentos narrados no filme "Maria Madalena" subvertem a história tradicional (que ouvi desde a infância), que apresentam a personagem como uma prostituta que se arrependeu de seus pecados por amor ao Cristo. Essa versão justifica expressões como Madalena arrependida e é fruto do machismo da época. 
Chega a ser engraçado falar em "machismo da época" num momento em que ainda se defendem direitos iguais para homens e mulheres em pleno século 21, e um candidato à presidência aqui mesmo no Brasil afirma que mulheres deveriam ganhar menos que homens.
No filme de Garth Davis, Maria é uma moça que vive num clã familiar, numa aldeia à beira de um lago (ou à beira-mar), que seria a origem de seu segundo nome (Magdala). Ela não aceita o casamento arranjado pela família e tem um poder de persuasão e de acalmar as pessoas, expresso numa das primeiras cenas do filme.  A recusa ao casamento faz com que logo receba a acusação de estar possuída por demônios.
Para sua sorte, Jesus passava por sua aldeia e ela acaba decidindo segui-lo como outros discípulos, contrariando a vontade da família e até de outros discípulos como Pedro.
Há passagens lindas no filme, outras meio dúbias, mas é claro que não pretendo contar tudo. O Jesus interpretado pelo ator Joaquin Phoenix é humano por demais, demonstra raiva, medo, confusão ... É também estoico, forte, apaixonante. 
Judas também tem uma participação forte no filme, que foge aos padrões do traidor que entregou Jesus aos romanos em troca de dinheiro.
Li uma crítica no jornal El País que diz ser possível pegar no sono várias vezes no caminho do Messias a Jerusalém. Achei engraçado e exagerado, mas "Maria Madalena" não é um filme para todos. 
Não sei se por conta do momento atual - a recente execução da vereadora Marielle Franco e uma onda de obscurantismo que invade o país -, mas posso dizer que eu me emocionei em vários momentos do filme, e saí do cinema tocada por ele e pela mensagem de amor, compaixão e misericórdia passada por Jesus e Maria Madalena.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Por quem os sinos dobram




Nas últimas horas foi difícil pensar em outra coisa que não fosse o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro. Eu me envolvi em debates, me decepcionei com algumas pessoas relativamente próximas que insistem em não compreender a diferença entre uma execução (os algozes de Marielle nem tentaram disfarçar isso) e o rol de mortes brutais de pessoas em meio à violência que brutaliza minha cidade do coração (o Rio de Janeiro).
Poemas foram escritos para louvar a luta de Marielle, charges emocionantes foram feitas. Milhares de pessoas foram ao seu velório na Cinelândia, no Centro do Rio; outras tantas homenagearam Marielle e o motorista Anderson em várias cidades no Brasil e no exterior. 
Até agora, não temos ainda os nomes dos responsáveis pelo crime cometido numa capital sob intervenção federal. Diga-se de passagem que essa intervenção era questionada por Marielle. 
Na minha cabeça misturam-se dezenas de fatos recentes: a execução da juíza Patrícia Aciolly que condenou PMs do batalhão de São Gonçalo, um dos mais violentos do Rio. A política de pacificação das favelas que deu certo em algumas comunidades e foi um fracasso em outras. A entrevista do traficante Nem da Rocinha, publicada esta semana no jornal El País, onde ele defende a legalização das drogas para acabar com o tráfico.
Mas é inegável que a população mais pobre é a que mais sofre com tudo isso. Abandonada à própria sorte, ela fica refém do tráfico e acuada pela polícia. 
Há uma banda podre na política fluminense (e de boa parte do país) que se locupleta com os lucros do chamado crime organizado. A quem interessa essa violência toda? Quantas empresas de segurança, fabricantes de arma ganham com o medo instaurado nos bairros de classe média e alta? Interessa acabar com tudo isso?
.Hoje, não tenho respostas. Só perguntas e muitas dúvidas. 
Não conhecia Marielle, uma liderança jovem, e obviamente não votei nela, mas respeito sua luta, sua força e lamento muito a sua morte, assim como a de Anderson, seu motorista naquela noite.
Que estas mortes não tenham sido em vão, como tantas outras! 
É difícil viver num país sem esperança e sem compaixão. onde a gente não consegue mais acreditar em ninguém e se choca ao saber quão duro e indiferente pode ser o coração de um colega ou mesmo de um parente.
Por isso, depois de muito me indignar, escolhi a frase tirada do livro "Por quem os sinos dobram" de Ernest Hemmingway para dar título a este post. 
"Não me pergunte por quem os sinos dobram
Eles dobram por ti".
Hoje eles dobram por Marielle e Anderson. Amanhã??? Podem dobrar por mim, por ti, por nós.