quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O príncipe Paulinho da Viola

1997 - Foto: Maristela Martins (site oficial de Paulinho da Viola)
Sempre digo que Chico Buarque é minha grande paixão como artista, mas ultimamente outro compositor brasileiro (também das antigas) tem ocupado um lugar muito especial no meu coração: Paulinho da Viola.
Há alguns anos, quando a gente ainda não tinha esse mania de registrar tudo no celular (bons tempos), fui a um bar da Lapa, no Rio de Janeiro, com minha sobrinha Bel. Que noite memorável, que terminou no tradicional restaurante Capela! 
Saímos de Ipanema com intenção de assistir a um determinado show de MPB num bar da Lapa e, quando descobrimos que a atração era outra (e não era samba), decidimos seguir adiante na Avenida Mem de Sá em busca de outro local. Paramos em frente ao Sacrilégio, que fica grudado no Carioca da Gema, e, enquanto avaliávamos as possibilidades, fomos convencidas por um cara que conhecemos naquele momento a entrar no primeiro, já que, segundo ele, naquela noite estava sendo comemorado o aniversário de César Faria, pai de Paulinho da Viola, que talvez aparecesse por lá para dar uma canja.
Apostamos na dica do desconhecido (que também foi jantar conosco depois) e nos demos muito bem. Teve canja de Nelson Sargento e outros sambistas, e o príncipe Paulinho apareceu. A casa era pequena, então ficamos todos muito próximos. Se fosse hoje, daria pra tirar muita selfie, mas ficamos focadas em curtir aquela alegria, a intimidade dos sambistas, a música perfeita de Paulinho. 
Por que essa história me vem à cabeça ? Por que ando ouvindo muito Paulinho: no carro, no notebook. E não me canso. Pelo contrário, cada vez mais descubro a poesia dele, curto a doçura de sua voz. Ai como gostaria de tropeçar novamente em Paulinho num bar da Lapa! 
Mas dizem que um raio não cai duas vezes na mesma cabeça, portanto, vou me deliciando somente com o som de sua voz e aprendendo suas músicas. No tempo em que frequentei o saudoso Chorinho (o bar Choros & Serestas, em Cuiabá), aprendi a cantar duas músicas de Paulinho da Viola: "Tudo se transformou" e "Onde a dor não tem razão". Esta última se incorporou ao "meu" repertório.
Fui visitar o amigo Magno Jorge no hospital. É sempre difícil visitar uma pessoa querida que está hospitalizada. Dá um medo de não saber o que falar, o que fazer!
Cheguei lá ouvindo Paulinho no som do carro ("Largo a paixão/ Nas horas em que me atrevo" - Só o tempo), com o coração já enternecido.
Durante a conversa com Magno, que usa um caderno para se comunicar na maior parte do tempo por conta de sua doença, Paulinho da Viola se intrometeu... 
Magno, fotógrafo dos melhores (do tempo em que não dava para olhar a foto na hora para ver se tinha prestado), compositor, tocador de violão e boêmio, começou a escrever os nomes de algumas de suas músicas preferidas. Citou "O bêbado e o equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, e mencionei os nomes de Chico Buarque e Paulinho da Viola. 
Ele escreveu então alguns versos de uma canção que não reconheci. Bendito Google! Busquei a informação pelos versos e encontrei "Nada de novo", que reproduzi no meu celular para deleite do meu amigo:

(...) Nada de novo
      Capaz de despertar minha alegria
      O céu, o sol, a rua
      Um beijo frio, um ex-amor
      Alguém partiu, alguém ficou
      É carnaval
      Eu gostaria de ver
      Essa tristeza passar
      Um novo samba compor
      Um novo amor encontrar
      Mas a tristeza é tão grande no meu peito
      Não sei pra que a gente fica desse jeito".

É incrível como o grande artista, o poeta consegue traduzir em palavras os sentimentos mais profundos! Salve Paulinho, um verdadeiro príncipe, "a elegância em forma de música", nas palavras de Magno Jorge! 
Esqueci de dizer que essa canção está gravada num LP de 1969 (Odeon). Nunca mais vou esquecê-la.


1983 - Ensaio fotográfico para o disco Prima Luminoso (site oficial de Paulinho da Viola)

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Dois amigos



Augusto e Paulo: há dias quero escrever sobre essas duas pessoas ligadas por laços de amizade singulares. Augusto é servidor público, meu sobrinho e afilhado, e foi através dele que conheci Paulo, morador de rua.

Num final de tarde de domingo, durante minha última visita a Brasília, meu sobrinho e eu saímos para molhar algumas das centenas de árvores que recebem um tratamento especial de Augusto, um desses caras que parecem personagem de ficção. Para ser mais exata, são 120 árvores plantadas por ele, das mais diversas espécies, e cerca de 200 “adotadas”, ou seja, plantadas pelo GDF (a administração de Brasília) ou outras pessoas, porém que correm o risco de morrer por falta de cuidados básicos. Parece até mentira, mas há pessoas como Augusto que dedicam parte de seu tempo de lazer a regar plantas e a protegê-las de inimigos naturais como formigas, e outros nem tão naturais, como roçadores de grama.

Nessa tarde, um de nossos objetivos era rever e regar o flamboyant que Augusto plantou junto à L-2 (uma via de grande movimento na capital federal), como meu presente de aniversário, em 2016, mais precisamente no dia 31 de janeiro daquele ano.

Assim que chegamos ao local, Augusto viu Paulo em meio aos carros num semáforo da L-2 e demonstrou sua alegria de revê-lo, já que o morador de rua andava sumido e meu sobrinho associou sua ausência a uma doença relatada em seu último encontro.

Enquanto Augusto molhava duas plantas no canteiro central, Paulo foi se aproximando. Normalmente, a aproximação de um morador de rua me assustaria. Ainda mais um cara grande e forte como ele, porém como Augusto disse que o conhecia fiquei tranquila. O que aconteceu a seguir foi aproximadamente meia hora de um papo delicioso. Como vi que Augusto estava sem pressa, dei vazão à minha veia de repórter e fiz um monte de perguntas para Paulo. Não anotei, nem gravei suas respostas, mas devia.  Ele disse tanta coisa interessante!

Paulo Emílio tem 51 anos e não revelou o motivo de ter se tornado um morador de rua, mas disse que pretende deixar essa vida. Aludiu vagamente a ter se envolvido com coisas e/ou pessoas erradas. Ele veio de uma cidade do interior de Minas Gerais (se não me engano), mas não pretende voltar para lá e diz que não conta com sua família.

Paulo mostrou orgulhoso os novos dentes, resultado de um implante realizado recentemente (o motivo de seu sumiço do semáforo da L-2) e pago com dinheiro que ganhou na rua. Disse que agora vai juntar dinheiro para pagar o tratamento de um câncer na próstata. Está na fila do SUS, mas sabe que o atendimento público vai demorar e contou que anda bem incomodado com os sintomas da doença.

A decisão de investir tanto em implantes dentários veio depois de ter sua dentadura roubada. Ele disse para o meu sobrinho: “Tem dinheiro seu na minha boca”, mas contou que boa parte do implante foi paga com uma grana alta que ganhou num envelope de alguém que conheceu na rua, quando pedia dinheiro para uma cerveja.

Paulo me mostrou em seu celular – também comprado com o dinheiro ganho na rua - um vídeo de seus 15 minutos de fama.  Nele, organiza o trânsito de motoristas e pedestres exatamente nesse semáforo da L-2 num dia em que estava quebrado.

Além dessa história, contou sobre uma vez que quase foi preso depois de espancar um cara que estava estuprando (ou tentando estuprar) uma mulher perto da rodoviária. O sujeito estava bem vestido e acabou dizendo à polícia que tinha sido vítima de assalto. A sorte de Paulo é que a vítima do tal sujeito estava na delegacia dando queixa e inocentou seu defensor. Segundo Paulo, o estuprador tinha ficha corrida com outras acusações de crimes semelhantes, inclusive, contra uma criança.

Também comentou sobre pessoas que oferecem trabalho a moradores de rua. Segundo ele, não raro surgem pessoas que procuram se aproveitar da situação de vulnerabilidade do morador de rua, oferecendo gato por lebre. Ele mesmo disse ter sido vítima de uma situação dessas há algum tempo: aceitou um emprego de caseiro num sítio e, quando chegou lá, as condições eram péssimas e o salário oferecido foi pro espaço.

Antes de se afastar (após ter recebido um agrado em dinheiro do meu sobrinho), Paulo ainda filosofou sobre vida e morte, dizendo acreditar que estamos no mundo em constante processo de aperfeiçoamento pessoal.

Outro momento interessante foi quando ele perguntou a idade de meu sobrinho, que tem 53 anos, e se admirou dele parecer mais jovem do que ele.

Enfim, um sujeito interessante, bom de papo, que me autorizou a tirar e publicar sua foto ao lado do amigo de rua.

Depois de visitarmos o meu flamboyant (que está lindo e viçoso) e molharmos outras plantas nas redondezas, retornamos para casa. Assim que cheguei, li sobre um episódio horrível envolvendo um morador de rua no Rio de Janeiro e pensei como a vida é surpreendente. E como pode ser cruel para as pessoas, sejam elas moradores de rua ou simples transeuntes. A vida é um mistério, como disse Paulo, sem saber do episódio envolvendo o morador de rua do Rio, que esfaqueou e matou duas pessoas, provocando uma cena assustadora mesmo nos tempos atuais de tantas tragédias urbanas.