sábado, 9 de maio de 2020

Maternidade

Às vésperas deste Dia das Mães tão atípico por causa da necessidade de isolamento social,  decidi voltar ao passado e dedicar alguns minutos à minha mãe. 
O primeiro passo foi buscar uma foto nossa, uma de nossas primeiras lembranças que me foi entregue recentemente por minha Junilza. 


Mamãe e eu na varanda da Fazenda Santa Blanca 
Há alguns anos comecei a escrever um livro sobre um empresário, cuja grande tristeza era nunca ter uma foto da mãe, que morreu quando ele era muito pequeno. 
Pois eu tive a sorte de conviver com minha mãe até completar 30 anos. Eu já tinha a minha própria casa, ao lado de meu primeiro marido, quando ela faleceu. 
A minha relação com a minha mãe era diferente da forma como minhas amigas se relacionavam com suas mães: quando nasci, ela tinha 44 anos! Hoje uma mulher de 44 anos é considerada jovem, bebe, se diverte, usa roupas coloridas e curtas. Minha mãe era uma senhora quando nasci e era avó de vários netos, já que sou filha temporã. 
Guardo poucas lembranças dela de quando eu era pequena. Em uma delas, eu a vejo rodeada por minhas irmãs que a penteavam. Nessa época ela sempre usava os lindos cabelos negros presos num coque e naquele dia me pareceu uma rainha.
Mas minha mãe não se portava como uma rainha. Ela trabalhava muito em casa. Era uma excelente dona de casa, que cozinhava maravilhosamente e era muito exigente com tudo que dizia respeito à casa e à família. 
Quando eu tinha dois anos, a gente se mudou de Corumbá para o Rio de Janeiro, com meu pai e minhas três irmãs solteiras: Junilza, Jandira e Jane. Meu pai, Júlio Baptista, morreu três anos depois e isso foi um divisor de águas em nossas vidas.
Minha mãe usou luto fechado durante muito tempo e passou a usar os cabelos curtos, roupas e sapatos de velha. Ela parecia não ter um pingo de vaidade. 
Por outro lado, após a morte do meu pai, que era 18 anos mais velho que ela, minha mãe passou a se ocupar mais de mim. 
Jandira e Junilza logo se casaram e ficamos somente Jane, mamãe, eu e Maria da Glória, a menina que morava conosco e ajudava nos trabalhos domésticos. 
Nas férias, meus irmãos que ainda moravam em Mato Grosso costumavam vir ao Rio com os filhos. Era uma confusão danada. Em mais de uma ocasião, aconteceu de duas famílias - com uma penca de filhos - se hospedarem ao mesmo tempo no nosso apartamento da Rua Barão do Flamengo e eu me recordo de ter sentimentos contraditórios a respeito daquela doce invasão.  Por um lado, eu me divertia com a bagunça dos sobrinhos e malas jogadas pelos quartos; por outro, me sentia ameaçada ao ver nossa tranquilidade invadida. Não sabia se era criança como eles ou a tia que deveria dar o exemplo, e tinha alguns privilégios como poder assistir à TV até mais tarde.
Minha mãe ficava doida, mas aparentemente dava conta de tudo. E parecia gostar daquelas visitas que quebravam a nossa rotina. 
Nilzalina aprendeu a ser mãe muito jovem, aos 17 anos, e parecia incansável em sua missão de nutrir e acolher filhos, netos e sobrinhos. Ela não se queixava de ter mais comida para fazer, mais pratos para lavar ... Era avessa às modernidades da vida doméstica.
Por incrível que pareça, muito jovem eu decidi que queria uma vida completamente diferente. Queria estudar, ser jornalista, aprender línguas estrangeiras, sair de casa, viajar pelo mundo. Filhos? Marido? Não eram prioridades. 
Minha mãe acompanhou meio atordoada a minha adolescência e juventude, cheia de conflitos e perguntas, que nunca outras filhas tinham feito. Hoje tenho certeza de que ela se orgulhava muito de mim, mas não era da sua natureza demonstrar isso, o que sempre me dava a sensação de que nenhuma conquista era digna de aplausos (até hoje guardo esse sentimento).
Minha mãe me acompanhava ao conservatório, onde comecei a aprender violão clássico, e depois aprovou minha mudança para a Pró-Arte, assistia aos concertos, e só ficou muito aborrecida quando resolvi - aos 16 anos - que queria participar do Festival de Música de Ouro Preto. Consultou meu tio Luiz, que morava em Belo Horizonte, e ele foi taxativo em dizer que moças de boa família não frequentavam o festival, que acontecia anualmente em julho. Um ano depois, com o apoio de minha irmã Jane, lá estava eu em Ouro Preto, vivendo aventuras magníficas, musicais e comportamentais, dividindo uma casa de república com um bando de malucos que estavam ali por amor à música.
Na volta de Ouro Preto, trouxe um amigo mineiro a tiracolo que pretendia hospedar em casa. Minha mãe não aprovou a ideia e o amigo, cujo nome não me lembro mais, sacou na hora o climão e se propôs a ficar na casa de outro amigo do Rio que tínhamos conhecido em Ouro Preto.
Outros acontecimentos foram marcando nossa relação, que ficou mais próxima, quando Jane também se casou e foi morar longe de nós ... em Ipanema. Era uma viagem ir do Flamengo até Ipanema nos anos 70! 
Na primeira metade da década de 80, quando eu já era uma jornalista com uma bela carreira pela frente, decidi ir morar com meu então namorado. O que poderia ser um choque para minha mãe - a decisão de morar com outro homem sem se casar - acabou sendo uma agradável surpresa para mim, diante da reação dela. Sua grande preocupação foi preparar um enxoval mínimo antes de nossa mudança. Tive a nítida impressão naquele momento que ela só pensava na minha felicidade e não se importava com a opinião alheia.
Fui morar num apartamento gracinha no bairro do Jardim Botânico e me lembro de não parar de chorar nos primeiros meses. Fiz terapia e descobri que era culpa. Eu me sentia extremamente culpada por ter deixado minha mãe, que passou a morar com uma cuidadora (contra sua vontade). Ao mesmo tempo, não achava justo só poder iniciar minha vida adulta e independente depois que minha mãe falecesse.
Nesses anos em que ficamos separadas fisicamente eu procurava visitá-la bastante. Trabalhava na sucursal da revista Veja em Botafogo e me esforçava ao máximo para almoçar com ela em meio à correria da redação. 
Graças ao meu terapeuta na época, Vitor, consegui me desvencilhar do sentimento de culpa e curtir muito o tempo que passava com minha mãe. Pela primeira vez, senti de verdade o quanto ela se orgulhava da minha profissão e do meu sucesso. Mamãe acompanhou com preocupação meu envolvimento no caso Amílcar Lobo (um militar que fez declarações bombásticas sobre o assassinato do deputado Rubens Paiva nos porões da ditadura) e chegou a me dizer um dia que tinha vontade de ter sido jornalista. 
Aquilo me deixou feliz, mas hoje me parte o coração pensar que ela não teve as mesmas oportunidades que eu, embora acredite que tenha sido feliz do seu jeito.


Mamãe e os filhos comemorando seu  73º aniversário, no dia 11 de abril de 1985
Dois anos após a morte de minha mãe, vim para Mato Grosso curtir férias do Jornal do Brasil e acabei me apaixonando (eu já estava separada) por um primo de segundo grau que reencontrei em Cáceres. Eu me casei, vim morar em Mato Grosso, tive duas filhas e continuo por aqui. 
Que ironia do destino eu me casar e morar exatamente na cidade que minha mãe deixou aos 16 anos para viver com meu pai em Corumbá, minha cidade natal!
Às vezes eu me pergunto se teria feito isso se ela estivesse viva na época em que mudei de vida. Será que aprovaria minha decisão de abandonar tudo por um amor?
Não sei. Só sei que, ao meu jeito, também pude exercer a maternidade graças a essa decisão. Sou muito grata por ter podido me dedicar plenamente às meninas em seus primeiros anos de vida. Só voltei a trabalhar quando Diana tinha três anos e Marina, um. Mas trabalhava meio período e perto de casa. 



Conseguia cuidar da casa e almoçar com elas diariamente. Aos poucos, a carga de trabalho foi se tornando mais intensa e, quando elas já eram adolescentes, nos mudamos (somente as três) para Cuiabá.
Acredito, entretanto, que a semente do amor, que nos une até hoje, já tinha sido plantada. E, com certeza, minha mãe teve uma participação muito grande nisso. Ela era a própria expressão da maternidade e seu amor foi decisivo para que eu também soubesse ser mãe. Pena que não aprendi a cozinhar com ela, que sabia fazer comidas tão simples e gostosas! 
A propósito, o desejo de escrever este texto surgiu no horário de almoço quando eu saboreava a feijoada que comprei no restaurante da rua. Estava muito gostosa e me remeteu às feijoadas que mamãe preparava na minha adolescência. Eu era enjoada, então ela fazia uma feijoada especial para mim, com carne seca e salsicha, sem os pertences do porco. A feijoada de hoje estava boa, mas a da minha mãe ... hum... era muito melhor! 
Espero que minhas filhas tenham outras boas lembranças de mim para guardar, que não dependam dos meus parcos dotes culinários.