domingo, 26 de abril de 2020

O mundo se despedaça


Concluí hoje a leitura de "O mundo se despedaça" (Companhia das Letras, 2019), do escritor nigeriano Chinua Achebe.  Tornou-se imperioso falar sobre isso. 
O livro é extremamente triste e, embora discorra sobre um mundo bem diferente do nosso, é tristemente atual.
Este livro chegou às minhas mãos em março, no início do período de isolamento social causado pela chegada do novo coronavírus. O porteiro me avisou que tinham deixado uma encomenda para mim e fiquei até desconfiada já que não estava aguardando. Abri a caixinha com medo e encontrei o belo livro, cuja capa abre este post.  O livro veio acompanhado de uma carta gentil e comovente da amiga Amanda Fontenelli, que conheci no final de 2018 num voo de Cuiabá para Brasília (mas isso é outra história).
Como estava envolvida com a obra de Tereza Albues, que já comentei em outro post, adiei a leitura de Chinua Achebe. No meio do caminho, havia outro livro me esperando: "O Vilarejo" de Raphael Montes, que me foi emprestado pelo amigo Jefferson Neves (outra hora também falarei sobre esse livro).
"O mundo se despedaça" não é uma leitura fácil. A tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva preservou vários termos do original e a versão brasileira vem acompanhada de um glossário organizado por Alberto da Costa e Silva, que também assina a Introdução.
Procurei fugir do glossário enquanto pude até um momento em que capitulei pois a compreensão de um termo usado no dialeto dos personagens era imprescindível para a continuidade da leitura.
"O mundo se despedaça" (do inglês "Things fall apart") conta a história de Okonkwo, guerreiro valente em plena ascensão no intrincado mundo dos ibos, no sudeste da Nigéria. Os fatos narrados acontecem em meio à chegada dos brancos, que provoca a ruptura do mundo como era conhecido por Okonkwo, seus contemporâneos e ancestrais.
O relato é bruto em várias passagens, sangrento e não há como não se condoer da sina de Ekwefi, e das outras mulheres de Okonkwo, e de seus filhos, muitas vezes espancados brutalmente pelo patriarca. Ao longo das 231 páginas do livro, o dia a dia da aldeia vai sendo apresentado com suas festas, celebrações e rituais. Mas o fio condutor da história é o desejo de Okonkwo de alcançar o topo da pirâmide social de seu clã, sobrepujando a história de seu pai, que considera um derrotado, um fraco.
Mas tudo isso - esse mundo solidificado em cima de tradições e de muito medo das forças ocultas, em que as mães são obrigadas a abandonar na "floresta maldita" os filhos gêmeos - é colocado em xeque com a chegada dos brancos. É claro que a chave de entrada é a religião. Os missionários brancos, alguns até bem-intencionados, questionam os deuses dos nativos e condenam seus costumes. Com isso, acabam atraindo a simpatia de pessoas que se sentiam marginalizadas ou simplesmente deslocadas naquele mundo. 
É esse "mundo" que se despedaça sob o olhar de Okonkwo, herói da tragédia descrita por Chinua Achebe. 
O romance de Achebe me remeteu em vários momentos a "Sapiens", que li no início deste ano. Escrito pelo historiador Yuval Noah Harari, o livro é um best-seller e já estava na 48ª edição brasileira (L&PM Editores) quando o comprei no aeroporto de Guarulhos, em novembro passado.
"Sapiens" é um livro extraordinário, de uma riqueza absurda, e explica a organização inicial do homo sapiens em comunidades. Inicialmente, tudo gira em torno da família, que vai se ampliando em clãs, cuja base de sustentação são crenças e tradições, que se unem para forjar uma identidade necessária à sobrevivência. Com a "evolução" da humanidade, esses clãs se transformam em cidades e os laços familiares vão se esgarçando, substituídos pelo estado, pela lei e por outras formas de controle e poder.
Mas isso também é outra história. 
Retornando ao nosso mundo, vejo com preocupação e sem grande esperança o desenrolar dos acontecimentos, sejam eles políticos ou sanitários. De uma certa forma, tudo caminha junto e tenho uma certa pena das pessoas que acham que política é simplesmente o jogo partidário. A política está presente em tudo, em cada decisão tomada por nós, pobres seres humanos que ainda não superamos totalmente o medo das forças do além e que resistimos fortemente a usar a razão para compreender certos fatos da vida.
Antes de terminar este texto, que corre o risco de ficar parecido com o discurso desconexo de certo presidente, gostaria de acrescentar mais um dado a esta reflexão. Estou quase terminando de assistir a uma série muito legal: "Annie with an E" (Netflix). Resisti um pouco a assisti-la, mas depois que comecei me apaixonei pela órfã Annie, sua nova família e amigos. Acho que a série tem pequenos furos, mas não há como resistir à alegria, à coragem e à capacidade de Annie de se meter em encrencas - e resolver muitos problemas seus e das pessoas que a cercam. 
Num episódio assistido ontem (ainda não terminei de assistir à série), uma adolescente indígena é atraída para uma escola com a falsa promessa de que vai aprender conteúdos que vão ajudá-la a viver melhor no novo mundo dos brancos. A história toda se passa no Canadá, no finalzinho do século XIX, e os brancos que se estabeleceram na ilha onde grande parte da série acontece são extremamente preconceituosos.  A doce menina indígena foi enviada para uma espécie de prisão onde é maltratada por padres e freiras, e obrigada a assimilar nome e costumes cristãos, em detrimento de sua própria cultura. Fiquei com um ódio ... 
Mais um mundo que se despedaçou com a chegada dos europeus ao continente norte-americano, assim como aconteceu com os povos indígenas das Américas Central e Sul com a chegada de portugueses, espanhóis, franceses e holandeses. 
Muitos chamam isso de progresso, mas é triste que esse progresso traga sempre tanta morte e sofrimento aos povos nativos, assim como aconteceu no mundo dos ibos retratado tão bem por Chinua Achebe.








Nenhum comentário: