terça-feira, 14 de abril de 2020

Acabou Chorare


Em que ano aconteceu essa cena? 1973? 1974? Caminho pela calçada da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, junto com amigos: Augusto (vulgo Bocão), Saboya, Albuca, Marcelo... 
Formávamos um grupo inseparável, que se conheceu no primeiro ano que estudei no Colégio Santo Inácio.
Eu vinha do Colégio Santa Úrsula, só de meninas, e fui da segunda leva de garotas do tradicional CSI, em 1972. 
Estávamos em plena ditadura militar. Éramos jovens demais para ter participado do auge do movimento estudantil (1968). Naquele momento, estávamos mais para a geração desbunde. 
A maioria dos meus amigos curtia rock, mas eu era apaixonada por MPB: Chico Buarque, Milton Nascimento. Eu era uma autêntica cria dos festivais aos quais assisti pequena, por influência de minha irmã Jane, 13 anos mais velha.
Encontrei naqueles amigos - Bocão, Saboya, Albuca e Marcelo - um grupo eclético que não gostava só de rock, mas curtia MPB e música clássica. Às segundas-feiras, frequentávamos o auditório do Ibam, em Botafogo, onde sempre rolavam concertos da melhor qualidade, de graça. Íamos juntos à Sala Cecília Meirelles e a vários outros locais de concertos e/ou shows.
Naquela noite, retornávamos de um show dos Novos Baianos,  no Teatro João Caetano (se não me engano), no Centro. Não me lembro se viemos a pé do teatro ou se apenas descemos do ônibus e caminhávamos em direção à minha casa e à do Augusto (ambos morávamos na Praia do Flamengo, enquanto os outros moravam em bairros mais distantes da Zona Sul). 
Mas o que ficou na minha lembrança foi sensação de encantamento após o show dos Novos Baianos, que era exatamente isso: uma fusão da boa música brasileira (frevo, samba, etc) com uma pitada de rock, da música eletrificada. 
Para quem é muito jovem, cabe uma explicação: no final dos anos 60, os baianos Caetano e Gil chocaram a plateia mais tradicionalista com a introdução de instrumentos eletrificados na música acústica tradicional. Com o tempo, isso passou a ser normal, mas naquele momento ainda havia muita gente que torcia o nariz para grupos como Mutantes e Novos Baianos.
Por conviver com meus colegas cabeludos do Santo Inácio, que amavam grupos como Yes, Genesis, Emerson, Lake and Palmer, e Jethro Tull, talvez eu fosse um pouco mais receptiva aos novos sons.
Mas se os Novos Baianos tinham um lado frenético, também traziam a suavidade, muita poesia em canções como "Acabou chorare"; reinventaram "Brasil Pandeiro", composição de Assis Valente de 1940; e acabaram se tornando "arroz de festa" em nossas rodas de violão com "Preta pretinha". 
Os Novos Baianos nos encantavam com seu visual hippie, longos cabelos e aquela magreza de gente que come pouco, fuma muito, e vive tudo junto e misturado.
Os Novos Baianos seguiram juntos até o final dos anos 70, mesmo após a saída de Moraes Moreira, considerado seu principal compositor junto com Luís Galvão.
As principais estrelas do grupo - Baby Consuelo e seu então marido Pepeu Gomes, além de Moraes Moreira - seguiram suas carreiras na mídia, assim como o baixista Dadi criou com o irmão Mu o grupo A Cor do Som, que fez sucesso nos anos 80. Mas, para mim, o encanto já tinha passado. 
Nesta segunda-feira, acordamos sob o impacto da notícia da morte de Moraes Moreira, vítima de um infarto aos 72 anos. Morreu sozinho em seu apartamento no bairro carioca da Gávea - o primeiro dos Novos Baianos a nos deixar.
Não vinha acompanhando muito sua carreira, embora sempre tenha simpatizado com ele. Em 2018, junto com meus colegas do Coro Experimental MT, cantamos o hit "Pombo Correio" no espetáculo "Canção Postal". Foi só alegria.
Moraes Moreira nos alegrou muito com suas composições e eu, pelo menos, fiquei sem saber o motivo de seu afastamento dos Novos Baianos. 
O que fica é a imagem de um cara bem-humorado, de voz marcante e aparência sempre jovial. Talvez eu precise conhecer melhor a sua obra musical.

Acabou chorare, ficou tudo lindo
De manhã cedinho, tudo cá cá cá, na fé fé fé ...

Bons tempos! Havia o medo, sabíamos que coisas terríveis aconteciam nos porões do país, nos pátios de quarteis não tão distantes da Praia do Flamengo, mas nós tínhamos a esperança de que tudo aquilo ali iria passar e a ilusão de que poderíamos mudar o mundo.




4 comentários:

Unknown disse...

Considero-me citada entre seus colegas cabeludos que gostavam de rock progressivo.
Bjs

Vera Capilé disse...

Maravilha, retratando o clima tenso da época, somado ao surgimento dos grandes da música da nossa época! Amei!!!!!

Martha disse...

Obrigada, Vera!!!
Essa foi a minha intenção.
Martha

Jane disse...

Lindo texto, Martha!
Além de me trazer à memória uma fase mto marcante na minha vida, vc fez uma bela e emocionante homenagem a Morais Moreira.