Neste período de isolamento social forçado pela ameaça
do novo coronavírus, ela tem sido uma companheira constante. Até a noite do último
domingo (05/04), eu me dividi entre assistir a mais um episódio de uma série da Netflix
ou ir para cama mais cedo com a finalidade de ler algumas páginas de seus
livros.
Ela é Tereza Albues, escritora mato-grossense nascida
em Várzea Grande, em 24 de agosto de 1936, e falecida em Nova York em 5 de
outubro de 2005.
Tereza Albues no Salão de Livro de Paris - Divulgação |
Como Tereza chegou à minha vida? Em dezembro passado,
estive na sede da Entrelinhas Editora e fui “intimada” por Maria Teresa Carrión
Carracedo a levar para casa uma caixa com quatro livros da autora. Eles haviam
sido lançados em uma edição comemorativa dos 25 anos da Entrelinhas, intitulada
“Conexão Tereza Albues” e, ao ter em mãos a caixa divinamente ilustrada com
obras de artistas da terra, não resisti. Comprei fiado e trouxe a caixa para
casa.
A leitura propriamente dita só começou em meados de
janeiro quando terminei de ler outro livro incrível (sou fiel aos livros que
leio). Não marquei a data em que iniciei a leitura da obra de Tereza com “Pedra
Canga”. Mas ocorreu com este livro um fato raro: acabei de lê-lo e,
imediatamente, recomecei a leitura. Coisa de doido? Não foi a primeira vez que
isso me aconteceu, mas é bastante incomum. Aliás, acabei de me lembrar que a
última vez que isso me aconteceu foi quando li “Todos os nomes” de José
Saramago.
A verdade é que me apaixonei tanto pela prosa da
autora que quis voltar ao início, reler cada página para poder sorver melhor os
acontecimentos, os personagens inusitados com seus nomes ainda mais inusitados.
“Pedra Canga” tem todos os elementos do realismo mágico que tanto apreciei na
minha juventude. Lembra aquela atmosfera de Gabriel Garcia Marquez, só para
citar o mais célebre dos escritores dessa escola literária.
Tudo parece fantástico, irreal, e, ao mesmo tempo,
muito próximo da gente. Como se fosse possível. Em meio a tempestades
tenebrosas, personagens sobrenaturais se misturam a outros tão carne e osso (bêbados,
beatas, donas de prostíbulos, parteiras, etc) para contar uma história
ambientada no bairro (fictício?) de Pedra Canga. Tudo nos é narrado através de
uma menina/escritora, alter ego da autora Tereza. É pelos olhos, ouvidos e sensações da nhanhã que sabemos o que se passou na
Chácara do Mangueiral e seus proprietários, os Vergare - uma família de
déspotas odiada e invejada pelos vizinhos.
Concluído no verão de 1985 em Nova York, última cidade
em que a andarilha Tereza morou, “Pedra Canga” traz na capa uma obra da
jornalista e artista plástica Vitória Basaia, de 2019.
Depois desse início promissor, passei à leitura de “A
travessia dos sempre vivos”, cuja capa é ilustrada com uma obra de Humberto Espíndola
(de 2016). O título me pareceu promissor e o mergulho foi tão ou mais intenso
do que no livro anterior. Datado do outono de 1991, este livro vai mais fundo
em sua abordagem do sobrenatural. São poucos os contatos na narrativa com o
real. Mortos e vivos se esbarram o tempo todo, o que, de uma certa forma,
justifica o título da obra. A saga da moça/narradora em busca da história de
seu bisavô João Padre é comovente e altamente sedutora. A narrativa mistura as
aventuras da própria narradora (seus encontros com os “sempre vivos”) com o
resgate da trajetória de João Padre, que abandonou a batina no interior de Mato
Grosso para se casar com Teodora, “negra, alta, linda, olhos enormes,
inquisidores”. João Padre enlouquece de
amor por Teodora e também de culpa por largar a batina, a vocação imposta pelo
pai. Homem bonito, inteligente, culto, alterna momentos de lucidez e imensa
ternura, com outros de total demência, que traz muito sofrimento a ele e sua
família. Os personagens, que cercam essa trama atendem por nomes como Judite
Louca, são tão familiares a nós que nascemos e já vivemos no interior de Mato
Grosso!
Ao encerrar a leitura dessa segunda obra, comecei a
ler o terceiro livro da caixa. “O berro do cordeiro em Nova York” – que diacho
de título é esse? O livro foi concluído no verão de 1992 na chamada Big Apple e a capa traz um desenho
digital da artista plástica Regina Pena (de 2016). Só essa capa já mereceria um
artigo à parte.
Comecei a ler esta obra no período de isolamento
social e ainda não terminei, mas passei da metade com folga. Fiquei
absolutamente fascinada. Mal conheço a autora, mas é nítida a pegada
autobiográfica do livro, que mistura fatos e acontecimentos tão incríveis que beiram
o realismo mágico. Mas a menina/escritora, que vê no estudo a única
possibilidade de fugir de uma vida de humilhação e opressão, está lá. Assim
como seu berro. De dor, de raiva. O berro que sai fácil, quando provocado pela
dor causada pelos vermes na barriga da criança malnutrida; o berro que não sai
num momento de muita tristeza e revolta. Berro de cordeiro imolado.
Que força tem Tereza ao trazer para seus leitores
fragmentos de sua própria história, da saga de seus antepassados, de seus
familiares, vizinhos, dos algozes de seu pai, misturados a uma trajetória de
ascensão e sucesso profissional surpreendentes e incontestáveis! A menina saiu
do sítio do Cordeiro e foi parar em Nova York, onde constituiu família e
faleceu em decorrência de câncer, às vésperas de completar 70 anos.
Finalmente, na semana passada, iniciei a leitura de
“Chapada da Palma Roxa”, lindamente ilustrado com obra de Márcio Aurélio. Foi a
segunda obra publicada de Tereza* e a última na minha sequência de leitura.
“Chapada da Palma Roxa”, não por acaso, guarda muitas semelhanças com “Pedra
Canga”, alternando relatos da vida dos moradores de uma localidade fictícia
(Porto Garça), “situada em região montanhosa” e “banhada pelo rio Quiraré”, com
passagens de puro realismo mágico com direito a borboletas que falam e diálogos
com um bebê morto em busca de respostas para o seu assassinato. Aliás, este
assassinato (que, segundo soube, foi um fato real ocorrido em 1948) é o ponto
de partida do romance, que, mais uma vez, tem como narradora a
personagem/escritora, alter ego de Tereza Albues. Impossível não se envolver
com os dramas de Miranda, a moça aprisionada por um pai violento e possessivo
(Loredano Papandroudis), e outros personagens que brotam da narrativa criativa da
autora. A propósito, recomecei a leitura na noite de terça-feira (06/04) com outro olhar, agora que já conheço o final da história.
Aliás, diga-se de passagem, que vida extraordinária
teve Tereza! Todos nós, amantes da literatura, mato-grossenses ou não,
deveríamos conhecê-la e louvá-la, mas a tirar por mim acho que não é essa a
realidade. A editora Maria Teresa, apaixonada pela obra de sua quase xará, deu
um passo ousado ao publicar de uma só tacada quatro de suas obras mais
conhecidas.
Que bom! Mesmo em tempos de pandemia – ou até mais do
que nunca – é tempo de ler, entregar-se ao prazer da leitura que provoca nossa
capacidade imaginativa, nos emociona e nos faz ficar indignados diante desse
Mato Grosso tão cruel, tão desigual, tão povoado de coronéis que conduzem as
vidas de outros seres humanos como se fossem bonecos de pano, meras marionetes.
Não Tereza! Ela se rebela contra um destino previsível e constrói sua própria
vida, heroína tardia de sua saga familiar.
Peguei o hábito de sempre olhar sua foto na orelha do
livro para ver se encontro os traços da menina franzina, “feia”, que nasceu com
vocação para ouvir e contar histórias. Vejo uma morena bonita, de sorriso largo
e vasta cabeleira castanha. Queria ter conhecido Tereza em vida, mas agora ela
se faz presente por meio de sua literatura. Jamais esquecerei Tereza Albues e
convido quem não a conhece a fazê-lo o quanto antes. Você não vai se
arrepender.
*“Pedra Canga” foi publicado em 1987 (Rio de Janeiro,
Philobiblion, Coleção Prosa Brasileira nº 19); o romance “Chapada da Palma
Roxa” foi publicado pela primeira vez em 1990 (Rio de Janeiro, Atheneu Cultura,
Série Ficção Brasileira); “A travessia dos sempre vivos” foi publicado em 1993
pela Editora da UFMT; e “O berro do cordeiro em Nova York” teve sua primeira
publicação em 1995 pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro.
Tereza teve mais dois livros publicados e tem outros cinco (romances e contos)
inéditos.
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